domingo, 27 de setembro de 2015

Fusão cultural muda imagem dos santos Cosme e Damião

Encontro entre o catolicismo e religiões africanas levou representação de Cosme e Damião à infância - Foto: Fernando Amorim | Ag. A TARDE | 27.09.2014
Encontros entre diferentes práticas culturais, inclusive as religiosas, acrescentam, suprimem e modificam hábitos, representações e outros elementos, como incansavelmente mostra a antropologia. Nesse sentido, as transformações que envolveram o culto aos santos Cosme e Damião, festejados neste domingo, 27, alcançaram, talvez, um patamar  único
nesse universo de trocas simbólicas: rejuvenesceram até virar crianças na iconografia mais difundida.
Daí que, geralmente,  quem vê os santos gêmeos representados como adultos no altar principal da  igreja matriz da Paróquia da Liberdade, de onde eles são padroeiros, fica  surpreso. Mas essa é a iconografia que se harmoniza com a narrativa católica oficial.
De acordo com essa tradição, Cosme e Damião eram árabes, médicos e trabalharam na Cilícia, a atual Síria. Convertidos ao cristianismo, atendiam doentes sem cobrar nada. Viveram no século IV e foram decapitados por ordem do imperador Diocleciano durante a perseguição aos cristãos.
Seu culto se expandiu rapidamente, pois, já no século VI, foram considerados patronos de uma  basílica em Roma. Os santos protagonizam uma vasta iconografia, com destaque para os murais de Fra Angelico, religioso e pintor italiano, que foi beatificado em 1982. Essa obra narra trechos da biografia dos gêmeos.
"A representação desse período os mostra na fase adulta. É uma iconografia completamente diferenciada do que mais tarde vai se firmar a partir do encontro da narrativa católica com a das religiões afro-brasileiras" , explica o doutor em antropologia Claudio Pereira.
A iconografia que mostra seus rostos com traços de europeus já modifica a história original dos santos, pois apagou sua origem árabe. Mas a distância em relação ao realismo é um traço da iconografia cristã mais preocupada com o ensino da doutrina.
"A representação dos santos segue um conceito teológico que ultrapassa o que diz a materialidade", diz o padre Josevaldo Carvalho Nascimento, titular da paróquia dedicada aos santos Cosme e Damião.
Detalhes
Cada iconografia conta detalhes da história do santo que representa. No caso da imagem que está na igreja da Liberdade, os dois seguram uma palma, que é o símbolo da vitória dos que morreram pela fé.
Além da palma, o santo que veste a túnica verde segura uma ampola, símbolo da cura pela ciência. Este é identificado como São Cosme. O outro, apontado como São Damião, segura a Bíblia, indicação de que a fé também cura, e veste rosa. A cor das roupas é a diferenciação entre os dois. A representação facial é idêntica.
A criação da paróquia na Liberdade incorporou o culto que já acontecia em várias residências no bairro, pois a devoção aos gêmeos no Brasil é antiga. Em 1535, 14 anos antes da fundação de Salvador, que é o marco da colonização portuguesa para valer, o donatário da capitania de Pernambuco, Duarte Coelho Pereira, ergueu uma igreja para eles na localidade de Igarassu.
Não dá para precisar quando o culto católico se entrelaçou aos elementos das religiosidades africanas, mas, segundo o antropólogo Vivaldo da Costa Lima (1925-2010) no livro Cosme e Damião - o culto aos santos gêmeos no Brasil e na África, a oferta do caruru  foi documentada por Nina Rodrigues (1862-1906) ainda no século XIX.
Como Salvador foi o principal porto de desembarque de africanos escravizados, não é de espantar que os santos tenham ganhado tantos devotos na cidade. Para vários desses povos, divindades gêmeas e outros encantados considerados crianças necessitavam  de atenção especial em sua prática religiosa. Essas referências estão estruturadas nas dinâmicas de religiões como o candomblé e a umbanda.
São deuses gêmeos e crianças, como os Vunjis, dos povos vindos da atual Angola, e os Ibejis, originários da região onde fica Nigéria e parte do Benim. Eles gostam de comida farta e variada, principalmente o caruru, além de doces e frutas.
Com o tempo, esse costume se associou de tal forme a Cosme e Damião que eles passaram a ser representados como crianças. E, às vezes, no lugar de dois, as imagens trazem três meninos. O terceiro é chamado  Doú  ou Doum.
Em seu texto, Vivaldo da Costa Lima afirma que, na tradição dos povos iorubá, se chama Idowu a criança que vem depois de um parto de gêmeos. Além disso, nos mitos da mesma tradição o número dos deuses gêmeos chega até nove, segundo o doutor em antropologia Ordep Serra, autor de Na Trilha das Crianças,  um estudo sobre os erês, encantados infantis também inseridos nesse complexo religioso.
Doum também pode recuperar reminiscências dos irmãos de Cosme e Damião que aparecem em algumas das suas biografias. De acordo com o livro  Todos os santos são bem-vindos, de  Monique Augras, eles se chamavam Antimo, Leôncio e Eupréprio e foram também martirizados.
Além disso, mais dois santos irmãos, comemorados em 25 de outubro - Crispim e Crispiniano -, foram introduzidos no grupo de crianças sagradas. "Esse culto gerou uma festa bonita que sacraliza a infância", completa Serra. É a lição de como a infância tem muito de divino.

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